O querosene de aviação sintético, principalmente aquele derivado de fontes renováveis, poderá ser um combustível chave para a transição energética e para a retomada do setor de aviação pós-pandemia
Uma solução de CO? e água, feita a partir do uso de energia renovável, que é capaz de abastecer um avião. Conhecido como querosene de aviação (QAV) sintético ou alternativo, o combustível é apontado como um dos principais impulsionadores da transição energética no setor de aviação, justamente pela baixa pegada de carbono em comparação ao QAV fóssil.
Existem vários tipos de querosene sintético, que variam conforme a fonte: biomassa, gases residuais, resíduos sólidos, carvão e gás natural. O QAV produzido a partir da biomassa foi o escolhido pela Shell para o primeiro teste de voo comercial com o combustível. O teste foi realizado em parceria com a KLM, em janeiro deste ano, e a aeronave saiu de Amsterdã, na Holanda, para Madri, na Espanha.
Neste voo, foi usado uma mistura de 50% de QAV sintético com 50% do QAV tradicional (fóssil), já que a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, na sigla em inglês) ainda não permite o uso de 100% de QAV sintético para operações de aeronaves comerciais, por motivos de segurança. A expectativa, segundo a KLM, é de que essa aprovação venha em breve.
Como ele é produzido?
Os QAVs sintéticos podem ser produzidos por processos tecnológicos químicos, termoquímicos ou bioquímicos. No Brasil, hoje, é permitida a produção e o uso do querosene parafínico sintetizado pelo processo Fischer-Tropsch, produzido pela rota termoquímica; o querosene parafínico sintetizado de ésteres e ácidos graxos hidroprocessados, produzido pela rota química, além das iso-parafinas sintetizadas e o álcool para combustíveis de aviação, produzidos pela rota bioquímica, segundo a ANP.
No caso do combustível da Shell usado no voo entre Amsterdã e Madrid, o processo de produção usado foi o Fischer-Tropsch. Resumidamente, é possível afirmar que o combustível foi obtido a partir do gás de síntese, que é uma mistura de monóxido de carbono (CO) e hidrogênio (H2). O processo não é novo, mas a formação do gás de síntese por meio de CO?, água e energia renovável, em vez de gás natural, pode ser considerada pioneira.
O que mostramos agora é que o gás de síntese intermediário também pode ser feito de CO?, água e energia renovável, em vez de gás natural de fonte fóssil. Isso é possível quando a água é convertida em H2 verde usando um eletrolisador de água movido a eletricidade de fonte renovável. Em seguida, o CO? e o H2 verde reagem juntos (por meio de uma reação chamada mudança reversa do gás da água) para produzir gás de síntese: a mistura intermediária ideal de monóxido de carbono e hidrogênio, afirmou Tim Baart, pesquisador e líder do projeto da Shell, à Brasil Energia.
Para esse lote específico de 500 litros de QAV sintético, o gás de síntese foi feito predominantemente a partir do CO? da refinaria da Shell em Pernis, na Holanda, e do CO? de uma instalação de biogás, de onde veio a biomassa. Esses gases foram combinados com o hidrogênio verde no Centro de Tecnologia da Shell, em Amsterdã.
Redução das emissões de CO?
Como a fonte de carbono do combustível não provém de culturas agricultáveis (ou seja, não vem da soja, da palma, ou de outros tipos de plantas) e, sim, do CO? capturado do ar, o QAV sintético é praticamente neutro em carbono, pois reduz as emissões de CO? em até 85% em comparação ao QAV fóssil, segundo as estimativas da KLM.
Essa porcentagem varia, uma vez que, dependendo da matéria-prima, o nível de emissões de carbono será diferente e precisará de uma avaliação distinta e criteriosa, já que a análise leva em conta todo o ciclo de vida de produção do combustível.
"Se bem projetado e aplicado em escala comercial, o processo que demonstramos para fazer querosene sintético pode fechar o ciclo de carbono e processar tanto CO? quanto o usuário final emite ao queimar o combustível em um motor. Mas, obviamente, isso vai depender muito do processo e dos ingredientes usados para fazer o querosene sintético", explicou Baart.
Apesar do QAV sintético ser quase neutro em CO?, a pegada de carbono total da aviação, ao contrário da percepção geral, é muito menor do que se imagina. Segundo a Open Airlines, empresa focada na aceleração da transição energética no ambiente aéreo, a aviação responde por 2-3% das emissões globais de CO? e por aproximadamente 10% das emissões de gases do efeito estufa no setor de transporte em geral.
Evidentemente, é uma porcentagem grande o suficiente para a indústria se preocupar, especialmente quando o mundo precisa reduzir coletivamente as emissões de CO? em 55% até 2030 para alcançar as metas do Acordo de Paris, mas não é a principal fonte de poluentes. A razão é bastante simples: embora uma aeronave queime muito combustível, não existem muitas aeronaves no mundo.
Os custos do processo
Atualmente, não há nenhuma empresa produzindo o QAV sintético derivado de fontes renováveis no Brasil. Contudo, explicou a ANP à Brasil Energia, apesar do combustível não ser produzido em escala comercial, o país já possui experiência nas três rotas de produção anteriormente citadas: química, bioquímica e termoquímica.
O processo de hidrotratamento para produção do querosene parafínico sintetizado de ésteres e ácidos graxos já é utilizado nas refinarias brasileiras de petróleo para remoção de enxofre, nitrogênio, oxigênio e aromáticos do diesel mineral nas unidades de Hidrotratamento (HDT).
Em relação à rota bioquímica, o Brasil possui experiência gerada pela planta em escala de demonstração da empresa Amyris do Brasil. Essa planta está localizada no município de Brotas (SP).
Quanto à rota termoquímica, por mais que ainda não existam plantas em escala comercial no país, essa tecnologia já foi testada pela Petrobras em parceria com a CompactGTL, fornecedora de equipamentos industriais britânica. O projeto contou com duas unidades de gaseificação de biomassa e uma unidade de Fischer-Tropsch em uma planta de demonstração instalada no parque de testes em Aracaju (SE).
Além disso, essas três rotas já constam na Resolução ANP nº 778/2019, que permite o uso de QAV alternativo no Brasil de acordo com determinadas especificações e obrigações relacionadas ao controle de qualidade do combustível. Então, qual seria o empecilho para a adoção do combustível pela indústria?
"No momento, o querosene sintético é muito caro e não é economicamente viável. Torná-lo economicamente lucrativo depende de muitos fatores, como o custo local da energia renovável e o valor local (considerando a regulação) do querosene sintético sustentável em comparação com o querosene derivado do petróleo bruto", explicou o representante da Shell.
De acordo com a BR Distribuidora, um estudo da Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, na sigla em inglês) mostrou que, dependendo do processo produtivo e do insumo utilizado, o custo de produção de um QAV sintético seria, no mínimo, 36% superior ao preço de comercialização do mesmo combustível. Para matérias primas de maior abundância para atendimento do setor aéreo, o custo poderia chegar a 4,7 vezes o custo do QAV fóssil, completou a distribuidora.
Transição energética
A expectativa é que o uso de combustíveis alternativos no setor aéreo seja cada vez mais comum no futuro. As empresas já estão se movimentando, como a Total, que anunciou, em 8 de abril, que irá produzir combustível de aviação sustentável (SAF, na sigla em inglês) a partir de óleo de cozinha usado em sua biorrefinaria La Mède, no sul da França, e nas instalações de Oudalle, perto da comuna francesa de Le Havre.
As operadoras aéreas também estão de olho na redução das emissões de CO? por meio do uso dos SAFs. A Air France e a KLM, por exemplo, anunciaram recentemente uma parceria voltada aos seus clientes corporativos. O projeto prevê que as empresas, após uma estimativa das emissões de CO? associadas às suas viagens, determinem uma contribuição anual ao programa que irá apoiar o abastecimento e consumo de SAF nos aeroportos.
Outro benefício do QAV sintético produzido a partir de fontes renováveis é que não é preciso modificar a infraestrutura das aeronaves e dos aeroportos, ou seja, o QAV sintético pode ser utilizado e armazenado nos mesmos lugares que o QAV fóssil atualmente ocupa.
Também não é preciso mudar as rotas de voo. De acordo com a Open Airlines, uma mesma aeronave pode partir com QAV sintético em seus tanques e, durante a volta, voar com QAV tradicional, se o aeroporto daquele determinado país ainda não tiver se convertido ao combustível verde. Isso simplifica as operações, já que as rotas de voo consideram vários aeroportos em seu itinerário, devido aos pousos de emergência.
Além das empresas e dos aeroportos, os países também estão atentos ao uso de combustíveis de aviação sustentáveis. Em comunicado conjunto divulgado em janeiro deste ano, a Holanda, França, Suécia, Alemanha, Finlândia, Luxemburgo e Espanha indicaram que a recuperação da crise atual devido à pandemia deverá ser acompanhada por uma aceleração da sustentabilidade do setor de aviação para atingir as metas climáticas. Uma das formas mais eficazes, segundo os estados europeus, é de desenvolver o QAV sintético em adição do bioquerosene.
"[A transição] acontecerá inevitavelmente em razão das iniciativas firmadas pela Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation (CORSIA/ICAO) de médio e longo prazo, que consistem em compensação das emissões de gases de efeito estufa do setor aéreo, e também pela própria mobilização dos agentes consumidores, envolvidos com uma agenda de sustentabilidade, informou a BR em resposta à reportagem.
Fonte: Brasil Energia
“Brasil se torna a grande potência verde do mundo com Combustível do Futuro”, afirma Alexandre Silveira
Agro sustentável impulsiona liderança brasileira na transição energética, destaca Fávaro