Testes com matérias-primas alternativas à soja e ao milho apresentam maior produtividade em menor área em regiões de baixo potencial agronômico
Juliana Espada Lichston, professora do Departamento de Botânica e Zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, estuda o potencial do cártamo para produção de biodiesel.
Quando o Brasil decidiu reduzir a mistura obrigatória de biodiesel sobre o diesel, ainda em 2021, o mundo enfrentava a maior crise sanitária do último século.
Com a quebra na oferta de matérias-primas e aumento nos custos de produção no campo, a saída encontrada pelo governo federal para controlar a alta nos preços dos combustíveis no mercado interno foi reduzir o uso da fonte renovável, atualmente mais cara que a opção fóssil baseada em petróleo.
A situação gerou um alerta ao país, que tem 70% da sua produção de biodiesel baseada em óleo de soja e praticamente 100% da produção de etanol obtida a partir de apenas duas matérias-primas: cana-de-açúcar e milho.
De acordo com cálculos feitos pela Câmara Setorial da Cadeia Produtiva de Oleaginosas e Biodiesel ainda em 2019, seriam necessárias 35% de toda a produção nacional de soja para alcançar uma mistura de 20% junto ao diesel fóssil – hoje em 12%, percentual abaixo dos 15% previstos no Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), criado em 2004.
“Porém, cerca de 60% da produção de soja em grãos do Brasil é exportada atualmente, sobretudo para a China, e esse cenário não vai mudar. Se hoje aumentar muito a demanda de soja de forma abrupta pode faltar soja no mercado brasileiro porque esse mercado de exportação é muito bem estabelecido”, explica o chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Agroenergia, Bruno Laviola, ao ressaltar o valor estratégico da busca por matérias-primas alternativas para a produção de biocombustíveis.
“Eu diria que é altamente estratégico produzir mais óleo, independentemente da espécie. Se a gente olhar a curva de consumo de óleo no mundo, ela vem crescendo cada vez mais ao longo dos anos e no Brasil isso não vai ser diferente”, destaca Laviola.
Segundo previsão do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), o consumo mundial de óleo vegetal deve atingir 223 milhões de toneladas em 2023/24, avanço de 3% ante 2022/23.
Embora negue que a forte dependência da soja coloque em risco o abastecimento de biodiesel no futuro, o próprio setor reconhece a importância de se desenvolver novas cadeias de matérias-primas para este fim.
“Nós não vemos, nos próximos anos, a necessidade de ter um aumento grande de outras matérias-primas para suprir a soja. Ela deverá suprir muito bem esta cadeia. Mas consideramos que é importante a busca por fontes alternativas porque quanto menos você fica na mão de uma commodity da qual não comandamos o preço, melhor”, destaca o diretor superintendente da Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (Aprobio), Julio Cesar Minelli.
Desenvolvimento regional
Para além das questões mercadológicas, o desenvolvimento regional e a inclusão social de pequenos agricultores também é uma preocupação quando o assunto é diversificação de matérias-primas para produção de biocombustíveis no país.
Parte importante do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), o plano de fomentar a agricultura familiar (inicialmente baseada a produção a partir do óleo de mamona), não saiu exatamente como o planejado.
Custo, produtividade e composição química do óleo da mamona contribuíram para seu menor uso na produção de biocombustíveis — Foto: Globo Rural
De acordo com levantamento feito pelo próprio Ministério da Agricultura, foram comercializados 3,4 milhões de toneladas de matéria-prima da agricultura familiar em 2021, queda de 6,3% em relação ao volume obtido em 2020.
Desse total, os produtores da região Sul responderam por 86,7% do volume comercializado, composto majoritariamente por óleo de soja.
“O PNPB surgiu em 2005 com essa perspectiva: de levar desenvolvimento às regiões do Brasil onde cada uma poderia ter sua cultura elencada como a melhor para a região e isso nunca aconteceu porque optou-se, por uma série de motivos, pela soja – e a gente sabe que a soja não é adaptada a todo o Brasil”, observa a professora do Departamento de Botânica e Zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Juliana Espada Lichston.
Ela se dedica ao estudo do cártamo, planta altamente adaptada ao semiárido nordestino e com um teor de óleo até 2,6 vezes superior ao da soja.
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A pesquisa, financiada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, visa justamente alavancar tanto a produção de óleo para produção de biodiesel quanto o desenvolvimento da cadeia produtiva no Norte e Nordeste – regiões que atualmente respondem por cerca de 7% do volume de matéria-prima destinada à produção do biocombustível.
“Isso é muito baixo, quase nada. Então estamos tendo a oportunidade de dar uma virada nesse jogo e fazer com que o Norte e o Nordeste do país de fato entrem nessa cadeia dos bicombustíveis”, avalia Juliana.
Motivações semelhantes levaram o professor da Universidade de Campinas, Gonçalo Pereira, a se debruçar sobre o agave – uma espécie de suculenta com alta adaptabilidade às condições de semiárido e com potencial de produzir até 7 mil litros de etanol por hectare ao ano.
“Isso é mais que um projeto, é uma revolução. Você já imaginou? A gente tem cerca de 105 milhões de hectares de sertão, isso é mais de 10% da área do território brasileiro e que hoje em dia tem pouquíssima atividade”, complementa o pesquisador.
Professor da Universidade de Campinas, Gonçalo Pereira, classifica o uso do agave para produção de etanol como uma "revolução" — Foto: Arquivo Pessoal
Os testes para o desenvolvimento de etanol a partir do agave contam com financiamento da multinacional petrolífera Shell e incluem, além dos estudos sobre a fisiologia da planta, o desenvolvimento de tecnologias para a mecanização do seu cultivo e a industrialização do seu processamento.
“Muita gente já pensou nisso antes. Se você voltar na literatura, você vai ver a quantidade de gente propondo uma coisa parecida. Mas ninguém nunca conseguiu articular um programa tão estruturado como esse e tendo recursos volumosos para aplicação em pesquisa e fazer toda essa articulação. Isso é novo”, observa Gonçalo.
Ao todo, o projeto já recebeu R$ 30 milhões em investimentos e promete transformar as regiões do Nordeste em que o cultivo do agave já está presente, porém com foco na produção do sisal – uma fibra que corresponde a aproximadamente 4% da planta.
O restante, hoje jogado fora, deverá ser destinado a biorrefinarias para ser transformado em etanol de primeira e segunda geração, além de hidrogênio verde. “Temos gente vocacionada que vive disso há mais de 100 anos na região, então acho que o Brasil tem uma condição incrível para fazer essa revolução”, pontua o professor da Unicamp.
Integração
No Centro-Oeste, a Embrapa Cerrados se debruça sobre o potencial da macaúba para produção de óleo vegetal com foco em biodiesel.
Com uma produtividade dez vezes superior à da soja, a palmeira torna viável a produção em pequenas áreas permitindo, assim, a inserção de pequenos produtores na cadeia do biodiesel.
“O mesmo não acontece com a soja e nem muitas vezes com o milho. Para o pequeno produtor, às vezes é mais fácil comprar do que ele mesmo produzir porque não é viável e ele tem que se concentrar em atividades que geram maior renda para ele em áreas pequenas, como frutas, hortaliças, e a macaúba é uma dessas possiblidades”, explica o pesquisador Marcelo Fidélis.
Soma-se à produtividade da espécie a possibilidade de integrá-las com a produção de culturas alimentares como o feijão, mandioca, abacaxi ou mesmo a criação de gado, já que os coprodutos gerados no seu processamento têm alto valor energético e podem ser destinados à alimentação animal tal como o farelo de soja.
Os testes apontam um teor de até 30% na torta da polpa da amêndoa de macaúba – níveis semelhantes ao subproduto gerado no processamento da soja.
O mesmo resultado foi observado nos testes com o cártamo, cujas pesquisas realizadas na UFRN indicam bom desenvolvimento da planta quando consorciada com feijão caupi e um teor de 27% de proteína na torta resultante de seu processamento.
“É um resultado muito bom e muito interessante porque é mais uma opção caso opte-se pelo cultivo consorciado. No caso do feijão, isso já foi testado e sabe-se que é possível”, completa Juliana.
Mandioca
No norte do país, a mandioca também tem apresentado potencial como fonte alternativa aos combustíveis fósseis com ganhos em segurança alimentar e desenvolvimento regional.
Em estudo desde 2010, a raiz típica da culinária brasileira tem sido testada para produção de etanol com foco na geração de energia, segundo explica o diretor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Rubem Souza.
“O etanol não é só para gerar energia elétrica. É possível usar para transporte, inclusive aqui no Amazonas, onde o transporte fluvial é intenso e a diesel. Então, temos um mercado interessante para a mandioca substituir o diesel também para esse fim”, diz Souza.
Os resultados iniciais da pesquisa realizada na fazenda experimental da Universidade Federal do Amazonas indicaram potencial produtivo de até cinco toneladas em um hectare com aproveitamento total da planta.
“É possível aproveitar absolutamente tudo da mandioca: da raiz e da parte aérea da planta podemos tirar substâncias para a indústria de cosméticos. E os resíduos gerados servem para produzir ração animal”, destaca o pesquisador ao pontuar que o uso da mandioca para produzir álcool não altera o consumo do alimento porque ainda permite a obtenção da farinha.
Já um segundo estudo iniciado em 2020 avalia o potencial da mandioca doce, sem aplicação alimentícia, para a mesma finalidade.
“Estamos analisando esses dois caminhos, pensando nas comunidades e de uma outra forma, visto que a mandioca doce poderia ser uma matéria-prima que poderia ser cultivada em qualquer região, em decorrência da facilidade do manejo", conta a pesquisadora Leiliane Sodré, uma das responsáveis pela pesquisa cujos primeiros resultados devem ser divulgados em setembro.
Apesar do cenário promissor, Rubem ressalta a necessidade de um volume de produção expressivo, aliado ao investimento para exploração do produto e a implementação de políticas públicas.
“Para enxergarmos todos esses ganhos, é necessário incentivo, assistência técnica, políticas agrícolas e públicas, e o investimento em educação e nessas tecnologias de exploração. O problema e a solução estão em políticas públicas”.
Minelli, da Aprobio, concorda. Segundo ele, o setor de biodiesel “ainda é pequeno para bancar o desenvolvimento de uma nova matéria-prima”.
“Isso tem que ser uma política de Estado. Tem que haver realmente uma política que desenvolva aquela matéria-prima que não vai ser usada só para o biodiesel, mas que poderá também ser usada para isso”, completa o executivo.
Fonte: Globo Rural
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