Os combustíveis são elementos que, literalmente, fazem a economia rodar e as sociedades se movimentarem, abastecendo frotas de veículos e alimentando motores nas indústrias. Eles são também uma das principais fontes de gases de efeito estufa que estão provocando as mudanças climáticas, o que demanda uma série de mudanças para descarbonizar o setor e diminuir seus impactos ambientais. Uma delas é o uso de biocombustíveis.
Existem dois tipos principais de biocombustíveis no Brasil: o etanol - produzido em sua maioria com cana de açúcar, além de milho - e o biodiesel, feito principalmente a partir da soja, mas também de gorduras animais, diferentes culturas oleaginosas e óleo de cozinha usado. Os biocombustíveis podem substituir parcial ou totalmente os combustíveis derivados de petróleo e gás natural em motores à combustão ou na geração de energia, do ponto de vista técnico.
No Brasil, toda gasolina comercializada possui 27% de etanol anidro na sua composição, por lei, e também é possível abastecer os carros leves com 100% de etanol hidratado. No caso do diesel, a porcentagem de biodiesel passou de 10% para 12% a partir de 1º de abril deste ano, com previsão de aumentar gradualmente para 15% até 2026 e 20% a partir daí; existe biodiesel 100%, mas não está disponível para comercialização em larga escala em postos de abastecimento e também demanda um ajuste no motor dos veículos. Apesar de ambos serem combustíveis, o etanol e o biodiesel servem a propósitos diferentes, cada um funcionando em um motor próprio para cada tipo.
Segundo a União para a Promoção de Plantas Oleaginosas e Proteicas (UFOP), com sede na Alemanha, cerca de 7% de 1,4 bilhão de hectares de culturas como grãos, oleaginosas, proteínas, açúcar e fibras, frutas, vegetais, nozes e outras cultivadas em todo o mundo foram destinados à produção de biocombustíveis em 2020. Essa produção está localizada principalmente em países onde já existe um excedente de matéria-prima e obrigações de mistura legalmente prescritas. O uso desse excedente na produção de biocombustível, segundo a entidade, reduz o excesso de produção, gera valor agregado extra e diminui a necessidade de divisas para importações de petróleo bruto ou combustíveis fósseis.
Em termos ambientais, um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) feito na região metropolitana de São Paulo mostra que a adição de 10% de biodiesel ao diesel evita 4,8% das emissões do setor de transportes e 244 mortes anualmente. Os resultados também apontam que o uso do etanol contribui para a redução de 7,2% de concentração de particulados associada ao setor de transportes e evita 371 mortes por complicações decorrentes da poluição. Outra avaliação, da organização americana Clean Fuels, demonstra que a adoção do biodiesel diminui o risco de câncer, mortes prematuras, ataques de asma e menos dias de trabalho perdidos.
Novas fontes para o etanol
Em 2022, a produção de etanol total foi de 29 bilhões de litros, segundo o Observatório da Cana e Bioenergia, da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica). A matéria-prima principal é a cana-de-açúcar, seguida pelo milho, que na última safra respondeu por 15% da produção na região Centro-Sul. Dados da Unica mostram que o uso do etanol evitou a emissão de 630 milhões de CO2 equivalente desde 2003, quando foi lançada a tecnologia flex.
Visando à diversificação para suprir demandas diversas, desenvolver cadeias produtivas e contribuir para o cumprimento das metas de descarbonização do país, outras matérias-primas têm sido estudadas para conversão em etanol: é o caso do agave e os cereais de inverno.
Com foco no Nordeste, o programa BRAVE (Brazilian Agave Development) estuda o potencial do agave - principal matéria-prima da tequila - como fonte de biomassa para a produção de etanol, biogás e outros produtos no sertão nordestino. A Shell Brasil, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Senai Cimatec firmaram um acordo de parceria para iniciar nova fase do programa, que prevê o desenvolvimento de tecnologias de mecanização para o plantio, colheita e processamento de diferentes espécies de agave. As duas frentes de atuação vão correr simultaneamente, ao longo de cinco anos, com investimento de aproximadamente R$ 100 milhões.
A intenção é utilizar 100% do potencial do agave para obter etanol de primeira e segunda gerações, visando a implantação de uma nova cadeia de negócios, explica André Oliveira, gerente executivo do Senai Cimatec, em nota. Em Salvador, serão construídas plantas-piloto para validar o escalonamento dos processos, além de testar e avaliar técnicas de adensamento e crescimento do agave. A iniciativa é uma das primeiras do Cimatec Sertão, campus dedicado a desenvolver tecnologias de produção industrial para exploração do potencial do Semiárido da Bahia, contribuindo com a geração de emprego e renda para as comunidades locais e a sustentabilidade do setor.
No extremo sul do país, o foco de estudo são os cereais de inverno: trigo, cevada, centeio, aveia e triticale (cruzamento de trigo e centeio). O Rio Grande do Sul importa 99% do biocombustível que utiliza, o que levou o estado a avançar na pesquisa e desenvolvimento de matérias-primas locais para produção própria de etanol, por meio da Política Estadual de Estímulo à Produção de Etanol (PL 292/20) e do seu Programa Estadual de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Etanol (Pró-Etanol).
Um dos grandes investimentos que integra essa agenda foi o anúncio por parte da Be8, maior produtora de biodiesel do Brasil (com 14% do mercado), de construir a primeira usina de etanol de grande escala do RS, localizada em Passo Fundo. A partir de 2027, quando totalmente instalada, a unidade processará 1.500 toneladas de cereais por dia para produzir 220 milhões de litros de etanol - suprindo 23% da demanda do estado - e 155 milhões de toneladas por ano de farelo para a cadeia de proteína animal, oriundo da produção do etanol. O investimento total do projeto é de R$ 556 milhões. A partir de agora, segundo informações da assessoria, a empresa avança para finalizar todos os estudos necessários, projetos de engenharia e a estrutura de financiamento para que a planta comece a operar na safra de trigo de 2024.
Com o objetivo de se tornar uma companhia de tecnologia global focada na área de energias renováveis, a empresa também possui, no Paraguai, o projeto da biorrefinaria Omega Green, que produzirá biocombustíveis avançados (diesel verde, combustível sustentável de aviação, gás natural liquefeito, hidrogênio e amônia verdes). Para produzir os novos materiais para a unidade de etanol no RS, a Be8 estabeleceu uma parceria com a Embrapa Trigo e com a Biotrigo Genética, empresa de melhoramento genético do trigo.
A Embrapa Trigo tem no seu portfólio sementes e material genético de espécies de trigo e triticale com níveis de amido que podem viabilizar economicamente a produção de etanol, afirma Jorge Lemainski, chefe geral da Embrapa Trigo, em entrevista ao Um Só Planeta. Os cereais são utilizados tanto na alimentação humana quanto animal, mas a Embrapa desenvolveu espécies de trigo e triticale para uso específico na produção de etanol, com alto teor de amido.
Além da Be8, Jorge menciona outras iniciativas de empresas e cooperativas que estão trabalhando para começar a usar os cereais de inverno para produção de etanol, incluindo a Cotrijal Cooperativa Agropecuária e Industrial, Vinema Biorrefinarias do Sul e Viadutos Biorrefinaria de Etanol.
“Nós temos terras suficientes para suprir a demanda de cereais para etanol e transformar isso numa atividade que contribui para a descarbonização do país [os cereais de inverno absorvem mais carbono do que a soja, segundo pesquisa da Embrapa], que melhora a estrutura do solo e que dinamiza a economia devido à intensificação das atividades do outono e inverno, diluindo os custos fixos e investimentos das propriedades e aumentando a competitividade”, explica Jorge. Todas as soluções agrícolas e tecnológicas já estão prontas, afirma, então a partir de agora é preciso que as plantas industriais sejam finalizadas e o plantio seja iniciado para abastecer essa indústria.
Novas fontes para o biodiesel
Segundo a Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (APROBIO), o volume de biodiesel produzido de 2008 a 2022 (59,6 bilhões de litros) substituiu a importação de diesel de petróleo no mesmo volume e evitou a emissão de 113,1 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Dependendo da matéria-prima e do processo industrial, afirma a entidade, a utilização do biodiesel reduz as emissões de gases de efeito estufa de 70% a 94%.
As principais matérias-primas para a produção nacional do biodiesel são soja (de 65% a 70%), milho, girassol, amendoim, algodão, canola, mamona, babaçu, palma (dendê) e macaúba, entre outras oleaginosas, além do óleo de cozinha usado (os quais, somados, abastecem de 30 a 35% da produção nacional).
Uma das peculiaridades sustentáveis do biodiesel é que ele é produzido a partir de rejeitos das cadeias produtivas. No caso da soja, por exemplo, o óleo é resultante do esmagamento dos grãos para fazer farelo, que segue para virar ração animal - uma parte dele é usado na indústria alimentícia e outra, na produção de biocombustível.
Segundo informações da APROBIO, duas matérias-primas estão ganhando cada vez mais espaço na produção de biodiesel. Uma delas é a gordura animal. Depois do sebo bovino, a principal, com cada boi gerando 40 kg de gordura, tem as gorduras de porco e de frango, que vêm ampliando sua participação desde 2019, sendo que o uso da gordura de porco já é maior que do óleo de algodão, de acordo com a entidade.
Outra fonte é o óleo de cozinha usado, que cresceu 30% em 2022 comparado ao ano anterior e somou 148 milhões de litros, segundo o Painel Dinâmico da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). O aproveitamento de óleo usado na produção de biodiesel agrega valor ao resíduo e promove a organização das cadeias de coleta para a aplicação industrial, desde o consumidor doméstico até as redes de alimentação, gerando renda para os envolvidos, informa a APROBIO. Atualmente, o óleo de cozinha usado representa 2,25% do total de insumo convertido em biodiesel, segundo a ANP, mas, no Sudeste, sua participação se aproxima dos 21%.
Como forma de ampliar esse uso, a empresa Be8 e o Grupo Madero firmaram uma parceria de compra e venda de óleo de cozinha usado dos 270 restaurantes da rede. O contrato prevê o recolhimento de 55 mil litros de óleo por mês. Também usando óleo de cozinha, a fábrica da Be8 na Suíça produz biodiesel e abastece seus caminhões com B100, ou seja, 100% de biodiesel, sem mistura. Por ser uma matéria-prima residual, não são atribuídas emissões de gases de efeito estufa a esse insumo, aumentando o potencial de descarbonização do biodiesel e elevando a quantidade de Crédito de Descarbonização (CBIO) que pode ser emitida por volume produzido.
Das culturas oleaginosas, uma que está sendo pesquisada como potencial fonte para biodiesel é o cártamo, planta exótica introduzida no Brasil e adaptada às condições do Semiárido nordestino. Segundo pesquisas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que começaram em 2009, a espécie é resistente à seca, às altas temperaturas, à baixa umidade relativa do ar e a solos salinos, além de possuir um teor de óleo de 30 a 45% em suas sementes, o que a torna uma alternativa promissora para a produção de biodiesel nas regiões semiáridas.
Segundo uma publicação do ano passado, o biodiesel de cártamo mostrou resultados satisfatórios para os parâmetros exigidos pela ANP, “se destacando como uma boa alternativa comparado com outros tipos de biodiesel discutidos nas literaturas”.
Desafios às novas matérias-primas e à ampliação do setor
Para permitir o uso energético, uma determinada cultura agrícola precisa ter larga escala de produção, o que exige domínio tecnológico e infraestrutura para cultivar, escoar e processar a produção. A pesquisa científica, segundo a APROBIO, é fundamental para identificar novas matérias-primas e desenvolver tecnologias para cultivo, extração, aproveitamento de coprodutos e reaproveitamento de resíduos e para melhorar a produtividade e a qualidade nos processos que já estão em uso, buscando aumentar a rentabilidade do plantio e promover o ganho de escala da produção.
Junto a isso, é preciso articulação do poder público com a indústria. “Como a produção de biodiesel usa os rejeitos de outras cadeias, é complicado para o setor investir numa nova matéria-prima, então é necessário que haja uma política pública para o desenvolvimento de novas oleaginosas, e o biodiesel pode ser a garantia de utilização de parte do produto dessas culturas”, afirma Julio Cesar Minelli, diretor superintendente da APROBIO, em entrevista ao Um Só Planeta.
Segundo a APROBIO, o Brasil é o terceiro maior produtor mundial de biodiesel, com a quantidade de 6,3 bilhões de litros produzidos em 2022. A capacidade instalada de produção atual é superior a 13 bilhões de litros por ano. Para que a produção aumente, é necessário um plano de longo prazo para que toda a cadeia se programe. “Não se pode dar um salto muito grande, você pode vir a criar uma perturbação, então é melhor que haja uma evolução gradativa”, afirma o diretor da APROBIO.
Uma das medidas que busca fortalecer o setor é o apoio aos pequenos fornecedores de matéria-prima, por meio do Selo Biocombustível Social. O programa do governo federal busca auxiliar a inclusão produtiva e social dos agricultores familiares, estimular a diversificação produtiva de culturas e promover a geração de renda no campo, por meio das cooperativas agropecuárias. O programa está estruturado em 17 estados e abrange 1.100 municípios. Segundo dados do Ministério da Agricultura, em 2021 foram atendidas 72 mil famílias de agricultores familiares, envolvendo 300 mil pessoas, via 107 cooperativas. De toda a matéria-prima utilizada na produção de biodiesel no Brasil, informa Julio, 30% é adquirida da agricultura familiar.
Segundo um estudo para a transição energética no Brasil até 2050, coordenado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o Centro de Economia Energética e Ambiental (Cenergia), da Coppe/UFRJ, o etanol e o biodiesel responderão pela maior parcela da oferta de bionergia até 2030. A partir de 2040, ganham destaque os biocombustíveis avançados, como o diesel verde, o bioquerosene de aviação, a gasolina verde e os biocombustíveis para uso marítimo.
“O desenvolvimento do papel dos biocombustíveis no processo de descarbonização internacional está totalmente relacionado à mobilização de governos, organizações internacionais e muitos setores que precisam acelerar a transição energética em seus negócios”, afirma a Be8 em nota ao Um Só Planeta. ”Em conjunto com entidades representativas do setor de biocombustíveis na Argentina, Brasil, Colômbia, Paraguai e Uruguai, expressamos a firme convicção de que é essencial que todos os governos promovam a estratégia de transição energética pelo desenvolvimento do setor, tanto para o transporte veicular, quanto para o aéreo, fluvial e marítimo.”
Acima de tudo, respeitar os biomas e sua biodiversidade deve ser um pilar dessa visão. Historicamente, o avanço de monoculturas para atender o mercado de biocombustíveis em todo o mundo traz questões polêmicas que precisam ser endereçadas dentro de políticas públicas efetivas, como o risco de locomoção da fronteira agrícola a terras marginais e áreas importantes do ponto de vista ambiental, aumento do uso e contaminação da água, além elevação do preço das commodities agrícolas, com risco à segurança alimentar.
Para Jorge, da Embrapa, a produção agroindustrial sustentável “é o único caminho para a segurança alimentar dos povos e a segurança energética”. Com planejamento e trabalho em conjunto de todos os setores, é possível descarbonizar o planeta sem deixar pegadas pesadas no caminho.
Fonte: Um só planeta
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