Especialista alemão diz que o país ainda vê recursos naturais como obstáculo ao desenvolvimento e alerta que ‘dependência de combustíveis fósseis é desvantagem’
Philipp Hauser tem grandes expectativas em relação ao Brasil. O químico alemão, que também é mestre em Administração pela UFRJ, atuou por 15 anos no país como executivo na área de transição energética e conhece o potencial das fontes renováveis por aqui.
No Agora Energiewende, uma organização alemã sem fins lucrativos que desenvolve estratégias para ajudar formuladores de políticas públicas a avançar na chamada neutralidade climática no mundo, ele tem se dedicado a soluções para a América Latina.
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Em entrevista ao GLOBO, Hauser destaca que a economia verde é para o Brasil uma poderosa ferramenta para a redução da desigualdade social, o incremento da indústria, o combate às emissões de gases do efeito estufa e a superação das mazelas provocadas pela pandemia.
O investimento em energia eólica, solar e biomassa no mundo foi de US$ 282 bilhões em 2019, só 1% superior a 2018, de acordo com o Programa de Meio Ambiente da ONU. Por que crescimento tão baixo?
Por mais que este volume esteja estagnado, há uma redução dos preços e um aumento na instalação de novas capacidades de produção. Uma turbina eólica custa menos hoje que há alguns anos.
Ainda assim, é importante multiplicar o investimento para garantir o êxito da transição energética. O primeiro passo é a descarbonização e a ampliação da matriz elétrica com fontes renováveis de baixo custo financeiro e ambiental.
O segundo passo é usar a energia renovável para substituir combustíveis fósseis na indústria e no transporte. O Brasil já venceu a primeira etapa. Agora precisa promover políticas que ampliem o uso das fontes renováveis de forma eficiente na economia como um todo.
Quais países estão mais avançados em relação a isso?
A expansão das fontes renováveis já é uma política de Estado em muitos países, sobretudo na Europa, mas também nos EUA, no Chile e na China. Não se trata apenas do combate às mudanças climáticas, mas também da busca pela competitividade industrial.
Quem dominar as tecnologias de geração renovável e eletrificação do transporte e da indústria ocupará a liderança na economia global.
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Esses países estariam propensos a negociar com nações cuja matriz ainda é de combustíveis fósseis?
A dependência dos combustíveis fósseis é uma desvantagem, pois representa um gasto recorrente. É preciso comprar carvão, gás, petróleo todo ano. O material queima e nada sobra. Já a energia renovável representa um investimento de longo prazo.
As hidrelétricas têm vida útil de 50, cem anos. As eólicas e solares chegam facilmente a três décadas. Além disso, são opções mais baratas, sobretudo no Brasil, que tem uma notória qualidade de recursos renováveis e, por isso, poderia ser líder mundial na transição energética.
E por que não lideramos?
Porque a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais ainda são vistos como um obstáculo ao desenvolvimento, e não como uma vantagem que permitiria superar mazelas, como os problemas de competitividade industrial.
É importante que a sociedade brasileira perceba como pode ser a grande vencedora no processo de transição energética global, devido à sua abundância de fontes de energia renovável, de minerais estratégicos, como também de recursos florestais e agrícolas.
Deveríamos combinar várias formas de energia renovável?
Sim. O sistema energético se beneficia pela sinergia entre diversas fontes. Quanto maior for a diversidade e interação dos recursos renováveis, menor será o custo para a sociedade. Por isso também é importante investir na diversidade geográfica, para que não haja energia eólica ou solar apenas no Nordeste, ou bioenergia somente em São Paulo.
A política ambiental brasileira é criticada em diversas esferas, inclusive no exterior. Pode prejudicar nossa transição para uma economia verde?
Por mais que haja diferenças ideológicas, é consenso que o Brasil precisa se desenvolver. Já são anos de crise econômica, há um acentuado problema de pobreza e injustiça social, agravado pelo fato de que se trata de um dos países mais afetados pela pandemia.
Não há consenso, porém, sobre as estratégias para a recuperação econômica. A transformação da economia para a neutralidade do carbono é uma oportunidade para isso.
Os investimentos para uma eletrificação renovável da economia e na produção industrial de baixo carbono oferecem emprego em escala e com qualidade. O Brasil tem grandes oportunidades na produção de insumos básicos de baixo carbono, como aço e cimento, até produtos de tecnologia de ponta, carros elétricos e biomateriais.
Se o país não valorizar sua vocação para a sustentabilidade, dificilmente conseguirá atrair os investimentos necessários para sua transição energética.
De que forma a mudança das fontes de energia influencia a transformação social?
A sociedade é beneficiada em três níveis. Em primeiro lugar, se a indústria brasileira ganha competitividade no mercado internacional, há geração de emprego de qualidade, crescimento do PIB e da qualidade de vida. A segunda vantagem é o fato de que este novo modelo de produção sustentável reduz impactos ambientais que comprometem a saúde da população.
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O terceiro ganho é relacionado ao desenvolvimento regional. As localidades de maior potencial para as fontes eólica e solar são municípios de baixo IDH. Então, investir nesses empreendimentos pode levar à redução da desigualdade social.
A Agência Internacional de Energia adverte que o planeta precisa investir US$ 5 trilhões anuais em energia sustentável até 2030, ante os US$ 2 trilhões aplicados atualmente a cada ano. Seremos capazes de alcançar este objetivo?
Sim. O mercado financeiro é capaz e está interessado em mobilizar esse capital, desde que haja um ambiente regulatório que lhe proporcione segurança. São investimentos de longa duração que dependem de um fluxo de caixa confiável por 20, 30 anos, e os países têm que estabelecer regras sólidas para receber essa verba.
Sim, há um mecanismo do Acordo de Paris em debate, o artigo 6, que promove a transação bilateral para resultados de mitigação. Assim, o Brasil poderia estabelecer parcerias com outros países para financiar medidas de proteção climática de alto custo. Também existe uma modalidade em que as empresas assumem o papel da implementação desses projetos, chamado Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS).
No MDS, a parceria bilateral seria firmada entre um país e uma empresa?
A ideia é que empresas façam investimentos de combate às mudanças climáticas em troca do direito de vender a redução de emissões geradas em forma de créditos de carbono. O engajamento da iniciativa privada nesse tipo de investimento é uma boa estratégia para mobilizar o capital necessário, mas a implementação desse mecanismo ainda depende de um acordo na Conferência do Clima de Glasgow (COP-26), em novembro.
O governo brasileiro diz que a falta de uma regra internacional para a precificação do carbono prejudica a obtenção de auxílio financeiro para combater o desmatamento. A reivindicação por verbas é legítima?
Acho que o Brasil erra ao condicionar a proteção da Amazônia ao auxilio internacional. O desmatamento poderia ser eliminado a um custo muito baixo. A mensagem, para mim, seria: “Eu protejo a Amazônia, mas preciso de apoio para desenvolver a bioeconomia e tecnologias inovadoras na produção industrial”. A diplomacia nacional deve pleitear investimentos, mas isso depende dos esforços tomados pelo país contra as mudanças climáticas.
Como a política climática do presidente dos EUA, Joe Biden, pode influenciar o mundo?
Biden juntou-se à corrida pela neutralidade de carbono ao compreender que é uma oportunidade de desenvolvimento. A Agência Internacional de Energia demonstrou que a descarbonização do sistema energético global pode gerar 35 milhões de postos de trabalho no mundo até 2030.
É possível zerar as emissões de gases de efeito estufa até 2050, como ele e outros líderes reivindicam?
Sim. Alguns países podem fazer ainda mais. O Brasil pode ser “clima positivo”, ou seja, absorver mais gases de efeito estufa do que está emitindo, e com isso compensar emissões residuais de outras nações, que não têm a mesma disponibilidade de recursos naturais.
A pandemia é uma oportunidade para a transição energética?
Certamente. O coronavírus provocou uma mobilização inédita de investimentos. Os países que têm boa governança sairão fortalecidos dessa crise. Muitos, porém, ainda não entendem que injetar verbas para a recuperação econômica é uma medida insuficiente. É preciso investir na recuperação verde das fontes renováveis. São elas que geram maior crescimento econômico e que evitam as mudanças do clima.
Fonte: O Globo
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