As crises sem precedentes no clima e na biodiversidade causadas pela ação humana estão conectadas, alimentam uma à outra e ameaçam a sobrevivência da Humanidade. Nenhuma será resolvida sem que a outra também tenha solução. O alerta está num relatório divulgado hoje e produzido por uma inédita colaboração entre os dois principais comitês científicos ambientais do mundo.
A chamada “sinergia negativa” entre mudança no clima e crise global de extinção trará perdas crescentes na biodiversidade e nos serviços que ela presta, como regulação do clima, fornecimento de água, estabilização do solo e produção de alimentos.
Produzido, em parceria inédita, pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) e pela Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), o relatório deve orientar as próximas cúpulas de ambiente da ONU. Em outubro, acontece em Kunming, na China, a COP 15 da Biodiversidade. Já a COP 26 do Clima será em novembro, em Glasgow, na Escócia.
“Mudanças climáticas causadas pela ação humana ameaçam a natureza e os serviços que ela presta para as pessoas, incluindo a própria capacidade de mitigar a crise climática. Quanto mais quente o mundo se torna, menos comida, água e outros serviços prestados pela natureza, ele terá”, disse, em comunicado, Hans-Otto Portner, presidente do comitê conjunto do IPBES e do IPCC.
Com recordes de desmatamento na Amazônia, queimadas sem precedentes no Pantanal e dono da maior biodiversidade do planeta, o Brasil estará no centro das discussões, afirma Carlos Alfredo Joly, presidente da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, o braço nacional da IPBES.
Atenção maior tem sido dada à crise climática, mas a da biodiversidade não fica para trás em importância, destaca ele.
— As mudanças climáticas são uma urgência, mas se houver ação de governos, das empresas e da sociedade de forma geral, pode ser reversível. Não para esta geração nem a seguinte, mas talvez em 50 anos ou mais. Já a crise da biodiversidade é irreversível. Se uma espécie é extinta, não há como recuperar. É uma perda irreparável. E a sinergia negativa, pois o clima depende dos seres vivos e estes do clima, é muito grande — explica Joly, professor titular de Ecologia Vegetal da Universidade de Campinas (Unicamp).
Até o fim deste século, um milhão de espécies serão extintas. E elas não irão sozinhas. Quando uma criatura desaparece, seja ela um animal de grande porte, um fungo microscópico do solo ou uma bactéria dos oceanos, o serviço ambiental que prestava também deixa de existir. É uma reação em cadeia.
A biodiversidade está em toda parte e seus serviços, embora imensos, nem sempre são percebidos. Abelhas e outros insetos polinizadores são fundamentais para o cultivo de laranja, soja e café, por exemplo. Tão fundamentais quanto para a agricultura são microrganismos fixadores de oxigênio.
São espécies de variadas de plantas e não apenas árvores que mantém a integridade do solo e ajudam a evitar crises hídricas e desmoronamentos. Tudo isso são serviços ambientais prestados e não pagos pela Humanidade.
“Os ecossistemas terrestres e os oceanos já fazem muito, absorvem 50% do CO2 emitido pelas atividades humanas, mas a natureza não pode fazer tudo”, diz Ana María Hernández Salgar, presidente da IPBES.
Mas, segundo Joly, alguns países e dentre eles o Brasil resistem em tratar os dois temas em conjunto. Considerado o país com maior biodiversidade do mundo, o Brasil deveria ser interessado, mas o que poderia ser tratado como oportunidade tem recebido o tratamento de problema, diz o cientista.
Entre os pontos destacados no relatório e que enfrentam resistência há anos estão as críticas à irrigação e à bioenergia. “O plantio para bioenergia (como de soja e cana-de-açúcar) em monoculturas que ocupam vastas áreas é prejudicial aos ecossistemas e reduz as contribuições da natureza aos seres humanos”, diz o relatório.
— São culturas que eliminam diversidade, exaurem o solo e impedem a chance de regeneração natural — diz Joly.
As culturas irrigadas são consideradas insustentáveis por gerar conflitos pela água, causar degradação do solo e, a longo prazo, salinização. Irrigação não é solução porque não resolve a causa da falta d’água e exaure recursos hídricos escassos, dizem os cientistas.
— A agricultura fica com 70% da água consumida pela Humanidade. Isso gera impactos irreversíveis e transfere problemas — acrescenta Joly.
Outro ponto salientado é a expansão das áreas protegidas. Hoje, elas representam 15% das terras e 7,5% dos oceanos em todo o mundo. Os cientistas recomendam que esses percentuais cheguem a pelo menos 30%. Também recomendam o fim dos subsídios ao uso de agrotóxicos, do desmatamento, à sobrepesca e o estímulo à redução do consumo de carne, especialmente nos países ricos.
O relatório não aponta apenas problemas, mas traz também soluções. Ele destaca que sistemas agroflorestais _ que combinam plantações comerciais, pecuária e florestas _ podem mitigar parcialmente emissões de CO2 por outras atividades. O mesmo impacto positivo tem a redução do desmatamento.
Joly diz que a COP 15 da biodiversidade terá não só uma prestação de contas dos países quanto almeja estabelecer metas para conservar a natureza pelos próximos 50 anos.
— Serão discussões de grande impacto, com reflexos na COP do clima, no mês seguinte — enfatiza Joly.
Biomas sofrem
O desmatamento da Amazônia e as queimadas do Pantanal têm o protagonismo na opinião pública. Mas a crise da biodiversidade está em todos os biomas brasileiros e a Mata Atlântica concentra o maior número de áreas de risco de perda de diversidade em função da crise climática. Nos domínios da Mata Atlântica vivem 72% dos brasileiros e é gerado 70% do PIB nacional. Mas dela restam apenas 12,4%.
Joly elenca três ecossistemas do bioma particularmente ameaçados pelas mudanças climáticas e explica:
— Esses três ecossistemas aparecem como críticos em todos os modelos de projeção climática.
O primeiro são os campos de altitude, como os que se estendem, por exemplo, no alto das montanhas da Mantiqueira (RJ, SPO, MG), da Serra dos Órgãos (RJ) e da Serra do Cipó (MG). A parte alta do Parque Nacional do Itatitaia é emblemática.
São mundos à parte onde as baixas temperaturas propiciadas pela altitude superior a 1.200 metros produziram um ecossistema delicado, de vegetação pequena no porte e colossal em diversidade. Há espécies de plantas, insetos e outras criaturas encontradas apenas ali. Mas com a elevação da temperatura e a mudança no regime de chuvas, está desmoronando num punhado de décadas o que a natureza levou milhares de anos para construir.
Carlos Joly destaca ainda as florestas de araucária. Restaram apenas 4% dessas florestas que cobriam vastas áreas das regiões Sul e Sudeste. Após séculos de destruição, para extração de madeira e expansão urbana, essas florestas sofrem também com a mudança do clima e caminham para o fim levando com elas não apenas as árvores, mas os animais que dependem delas.
Apesar do nome, essas florestas, além do pinheiro brasileiro, que é dominante, são formadas por jacarandás, ipês, cedros, canelas e muitas outras. As florestas de araucária dependem de chuvas por todo ano e frio rigoroso no inverno. Nelas, ocasionalmente, pode até nevar. Mais uma vez, é um ambiente com dias contados num planeta mais quente e sujeito a secas.
O terceiro ecossistema enfatizado por Joly são as matas de brejo do Nordeste. A altitude propiciou no coração do sertão ambientes de clima úmido e temperatura amena. São literais enclaves da Mata Atlântica em plena Caatinga.
Brejo no sertão nordestino não são áreas pantanosas, mas sim matas tropicais e subtropicais úmidas. Esses ecossistemas, autênticos oásis de água e verde, existem, por exemplo, na Chapada do Araripe (CE), no Planalto da Borborema (AL, PE, PB e RN), na Serra da Ibiapaba (PI e CE) e no Maciço de Baturité (CE). Porém, mais uma vez a altitude não é capaz de poupá-los de um clima em mutação.
Fonte: Extra
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