O combate às mudanças climáticas no Brasil deve passar pela redução do desmatamento e pela conservação das florestas — mas também por ampliar o uso de energias renováveis e repensar o setor de transportes, já que a produção brasileira depende de caminhões a diesel, um combustível fóssil.
É o que aponta Mercedes Bustamante, presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e uma das revisoras do relatório-síntese do AR6 (Sexto Relatório de Avaliação) do painel científico do clima da ONU (IPCC, na sigla em inglês), lançado nesta segunda-feira (20).
Também professora da UnB (Universidade de Brasília), ela explica ainda que, por ter uma população altamente urbanizada, o país precisa pensar em soluções de adaptação climática que amenizem os impactos de desastres como o que aconteceu em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, em fevereiro.
"Talvez hoje a gente nem precise mais de gráficos do IPCC, basta as manchetes dos jornais para vermos o que está acontecendo", diz, acrescentando que o relatório traz justamente a descrição de eventos extremos como esse.
Como resposta a essas tragédias, Bustamante lembra a importância de diminuirmos ao máximo o uso de combustíveis fósseis. "Temos mais incentivos financeiros para a indústria de combustíveis fósseis do que para as ações de adaptação à mudança climática. Então, não só estamos deixando de colocar o recurso necessário para as soluções, como continuamos investindo no problema."
A bióloga nascida no Chile também tem nacionalidade brasileira e é uma das duas representantes do Brasil entre os autores do documento —a outra é a matemática Thelma Krug. A pesquisadora falou à Folha poucas horas depois da conclusão do relatório, após sessões que se estenderam madrugada adentro nos últimos dias, em Interlaken, na Suíça, até chegar ao texto final.
O que a senhora destacaria deste relatório? Esse relatório vai ser uma contribuição importante, porque vem aí o balanço global do Acordo de Paris [que começou em 2021 e vai ser concluído neste ano] e vamos ver o que já se avançou e o que falta avançar para atingir os objetivos do acordo.
O relatório indica que, embora haja algum progresso na ação climática, ainda não estamos na rota que deveríamos estar. Fica bastante clara a necessidade de mais ambição e coordenação para a redução das emissões, além de, ao mesmo tempo, fechar a lacuna da adaptação [às mudanças no clima].
A vantagem do relatório de síntese é exatamente mostrar essa relação muito forte entre mitigação e adaptação: já que existem limites para adaptação, você precisa reduzir as emissões muito fortemente, também para que as estratégias de adaptação funcionem.
E quais são as principais mudanças em comparação com o último relatório, o AR5, de 2013? Primeiro, a ciência avançou muito na atribuição dos eventos extremos, que é a conexão apontando que eventos climáticos extremos já estão acontecendo e que estão associados à mudança do clima.
Também tem o avanço na discussão de perdas e danos, considerando que esses eventos extremos já implicam em perdas e danos para grupos mais vulneráveis.
E aponta, ainda, que uma fração importante do globo está hoje sob situação de maior vulnerabilidade. Ele avança bastante também no entendimento dos modelos [climáticos]. Os
modelos do AR5 colocavam que bateríamos [o aumento na temperatura global de] 1,5°C um pouco mais para frente. O AR6 antecipou isso em cerca de dez anos: é mais provável que a gente alcance 1,5°C já próximo de 2030, até 2035.
Qual mensagem essa síntese de agora acrescenta em relação aos outros relatórios que fazem parte desse ciclo do AR6? A síntese traz muito forte a questão da justiça climática, ou seja, que você tem que considerar que as perdas e danos já fazem parte do presente, vão se acentuar no futuro e que elas implicam em um aumento da vulnerabilidade exatamente dos grupos que contribuíram menos [em emissões].
[O texto] considera que o caminho da transformação [energética] tem que ser ancorado em inclusão e justiça climática, no entendimento de que existem valores que são diferentes entre culturas e que há outras fontes de conhecimento que precisam ser integradas —especialmente o conhecimento tradicional, indígena, e os valores e visões de mundo que esses grupos têm.
Essa mensagem já aparecia, mas a síntese a coloca como um dos pontos-chave da justiça climática.
O relatório fala que precisamos de "reduções rápidas e profundas e, na maioria dos casos, imediatas das emissões de gases de efeito estufa em todos os setores nesta década". Que cara isso teria no Brasil? O que é importante fazer para reduzir rapidamente as emissões aqui? O Brasil tem um caminho muito claro, que é a redução do desmatamento e a
conservação das florestas. Outro ponto que o relatório AR6 avança é falando que cada pequeno aumento de temperatura vai reduzindo a eficiência dos grandes drenos naturais [sumidouros de carbono, que diminuem o CO da atmosfera], que são os oceanos e os sistemas naturais [como florestas].
O Brasil tem ainda a possibilidade da redução das emissões de metano e a pecuária pode contribuir reduzindo o metano que vem da agricultura. Essas são as nossas principais fontes [de emissões de gases-estufa]. Mas nós podemos fazer mais nos setores de energia, em que a transição já vem acontecendo no mundo todo, com aumento das energias solar e eólica, e transportes.
O Brasil precisa avançar muito no transporte, tornando nossos modais viários menos intensivos em carbono. Apesar de já termos a vantagem da mistura dos biocombustíveis aos fósseis, ainda somos muito dependentes do transporte de carga. Por que o preço do diesel é tão sensível e existe a possibilidade de que isso paralise o país?
Porque o setor de transportes ainda é movido a caminhões e a diesel. Além disso, o Brasil tem uma população extremamente urbanizada e o relatório traz o potencial que as cidades têm de contribuir com a redução das emissões no setor de serviços, de consumo...
Mas também, lembrando o que a gente vivenciou recentemente em São Sebastião, como tornar nossas cidades mais resilientes à mudança climática?
É aí que temos tido o maior número de perda de vidas em assentamentos irregulares e áreas urbanas consolidadas de forma não planejada, sem o apoio devido do poder público. Então, existe aí uma discussão que vai ser muito importante para o país.
Como a senhora mencionou com o caso de São Sebastião, o Brasil tem visto fortes chuvas atingindo o Sudeste, com impactos consideráveis para a população. O relatório fala em quase metade da população mundial muito exposta às mudanças climáticas e num incremento do número de mortes por desastres entre populações mais vulneráveis. É possível relacionar eventos recentes como a chuva concentrada às mudanças climáticas e à vulnerabilidade citada pelo relatório? Um mundo mais quente acentua muito o ciclo hidrológico. Então o que estamos percebendo?
Que há uma quantidade maior de chuva distribuída num curto espaço de tempo.
Às vezes, você vê no jornal que choveu em algumas horas o que deveria chover em uma semana, em meses. Está havendo a concentração desses eventos sem a capacidade de escoamento [da água] e com a população distribuída em áreas de risco. Amplia-se essa conjunção com um processo de ocupação urbana que não levava em consideração esses eventos.
Nós vamos estar cada vez mais expostos a esse tipo de situação. Talvez hoje a gente nem precise mais de gráficos do IPCC, basta as manchetes dos jornais para vermos o que está acontecendo. E basicamente você olha no relatório a descrição daquilo que hoje vira uma notícia. É uma referência muito próxima das pessoas.
Além disso, a senhora vê no relatório outros avisos especialmente úteis para a realidade brasileira? Um aspecto importante para o Brasil, como um país megadiverso, é entender e monitorar o que vai acontecer com a sua biodiversidade, que está associada também a serviços e processos [naturais] dos quais nós dependemos.
O Brasil abriga e tem responsabilidade sobre uma fração significativa da biodiversidade global. Então, [precisa] entender o que está acontecendo, ampliar o monitoramento e a proteção.
Ações de adaptação sempre vêm à tona quando desastres acontecem, mas há limites para o quanto é possível adaptar. O que o relatório diz sobre isso? E há uma grande lacuna de adaptação?
Ele deixa bem claro que temos os limites suaves, que são barreiras políticas, financeiras etc., que precisam ser retiradas, e limites duros, como, por exemplo, na zona costeira.
O aumento do nível do mar é uma das mudanças irreversíveis , ou seja, que, ainda que a gente consiga controlar as emissões, vão se manifestar ao longo de séculos até milênios. Toda essa população que está exposta ao aumento do nível do mar é um limite duro para a adaptação.
Como você controla isso?
Não tem como controlar.
É importante pensar que algumas populações de locais em condições extremas não vão ter condições de migrar. Ou vai ter outro problema, que é forçar a migração de grandes grupos populacionais buscando melhores condições.
A Agência Internacional de Energia diz que, para atingir a meta de limitar o aquecimento a 1,5°C, é preciso que não haja mais nenhum investimento novo em combustíveis fósseis. Tendo isso em vista, como vê a aposta do governo Lula em relação à exploração de petróleo, em especial na Amazônia?
O mote do IPCC é que ele tem que ser politicamente relevante, mas não pode ser politicamente prescritivo. Em todos os países existe essa discussão sobre o que vai acontecer em termos de segurança energética para diferentes nações.
Agora, colocando o Brasil de uma forma geral e vestindo um pouco o chapéu que eu tenho agora, de [presidente da] Capes: o relatório é muito claro na necessidade de investimento em tecnologia, em pesquisa e desenvolvimento, que nos permitam traçar outras trajetórias em termos de uso de energia.
Todos os países vão ter que fazer esse balanço entre o quanto a utilização dos recursos que eles têm está sendo feita de forma coerente a construir outro futuro para o setor de energia.
A gente vai vendo hoje que muitas empresas ligadas ao setor de petróleo, na verdade, estão se transformando em empresas de energia e começam a explorar também outras formas de energia — renováveis, sobretudo— dentro do seu portfólio.
O relatório ressalta ser possível limitar o aquecimento a 1,5°C se forem tomadas medidas rápidas e profundas. A senhora tem esperança?
O desafio é grande, porque precisamos reduzir as emissões à metade até 2030 e a gente já está em 2023. O ideal seria, ainda que o 1,5°C seja ultrapassado, que fosse algo temporário: que aumentasse para depois reduzir. E quanto mais cedo você reduz, menos impacto tem. É sempre importante lembrar: 1,5°C é melhor que 1,6°C, que é melhor que 1,7°C, e assim por diante.
Porque é mais difícil reverter. É mais caro e temos menos controle sobre os impactos que vão acontecer em função de um aumento, ainda que por um curto espaço de tempo, acima de 1,5°C. Quando olhamos os eventos [extremos] que citamos aqui, estamos falando, hoje, de um aumento de 1,1°C [que já existe]. E 1,1° C já nos põe nessa situação de emergência climática.
Fonte: Folha de S. Paulo
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