Artigo de opinião de Camilo Adas, diretor de Transição Energética na Be8 (associada APROBIO)
A Revolução Industrial trouxe invenções que transformaram os transportes. A máquina a vapor e os vários tipos de motores a combustão, os motores elétricos, as turbinas e tantos outros engenhos permitiram o progresso e a evolução da sociedade. Ao longo dessa jornada uma máquina se difundiu amplamente: o motor de ciclo diesel.
Este motor, que pode trabalhar em dois ou quatro tempos, foi inicialmente usado como uma alternativa mais eficiente aos motores a vapor estacionários e adotados em navios e submarinos. Rapidamente seu uso se expandiu para locomotivas, ônibus, caminhões, equipamentos pesados, máquinas agrícolas e sistemas estacionários de geração de energia elétrica.
Em 1893 Rudolf Diesel publicou uma patente explorando os efeitos da explosão que ocorre ao injetar óleo misturado com oxigênio em um recipiente. Diesel apresentou seu motor na feira internacional de Paris usando óleo de amendoim. Na virada para o século XX, como hoje, um período de grandes transformações tecnológicas aconteceu e entre elas estava o surgimento do motor diesel.
Embora projetado para funcionar com óleo vegetal, foi o produto oleoso da primeira fase de refino do petróleo bruto que se denominou de “óleo diesel”, em homenagem ao inventor da máquina termomecânica. No entanto, isso não significa que todos os motores de “ciclo diesel” devam trabalhar exclusivamente com o óleo diesel refinado do petróleo. Desde que a pressão no sistema de injeção seja regulada, um motor pode funcionar com qualquer tipo de óleo, seja de origem fóssil, vegetal ou animal.
Hoje sabemos que a dependência de combustíveis fósseis para a propulsão da mobilidade tem contribuído significativamente para a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE), afetando o clima global. Devido sua ampla utilização, o motor diesel tem grande participação no problema, mas é também uma das mais imediatas e efetivas possibilidade de solução.
Um país com mais de 2 milhões de caminhões em utilização
O Brasil possui mais de 2 milhões de caminhões na frota circulante, sendo sua vida média cerca de 12 anos. No país ainda circulam caminhões com 20 anos ou mais. A taxa de substituição por veículos novos é muito baixa, apesar das tentativas como o Programa Renovar-Auto.
Por outro lado, mesmo que houvesse uma grande renovação da frota circulante, não há clareza a respeito de tecnologias substitutivas que de fato virão a promover a descarbonização a um custo acessível para mercado. Não há como imaginar o modal rodoviário brasileiro movido a motores elétricos, tantos seriam os entraves.
Isso é ainda mais desafiador face a realidade de caminhoneiros autônomos com mais baixo poder aquisitivo. Na verdade, a forma imediata e efetiva de descarbonizar o modal rodoviário brasileiro é através da utilização de biocombustíveis na frota circulante.
Não obstante, o país precisa continuar trabalhando para o uso de motores a combustão por biometano e da eletrificação em nichos como a “última milha” ou o ônibus urbano. Motores a combustão por hidrogênio ou por células de troca de prótons (Célula PEM), são uma opção para o transporte interestadual brasileiro a longo prazo.
Temos avançado muito, seguindo tendências mundiais bastante exigentes para a mitigação das emissões locais (CO, NOx, material particulado, entre outros). Mas tais avanços normativos e legislativos não reduzem os riscos de aumento da temperatura atmosférica, pois é a emissão de dióxido de carbono (CO2) que causa esse efeito.
Precisamos voltar à origem do desenvolvimento de Rudolf Diesel na tentativa de balancear a emissão de GEE, precisamos voltar a utilizar óleos vegetais como energéticos para a frota circulante, o mais rápido possível.
HVO e SAF: um dilema econômico
Neste sentido, duas possibilidades principais se abrem. O óleo vegetal hidrogenado e o biodiesel. O primeiro seria o combustível perfeito, pois sua molécula é idêntica ao produto de fonte fóssil. Muitos esperam por este produto estar disponível para abastecimento em grande escala.
Também conhecido como diesel verde, ou pela sigla em inglês “HVO” (Hydrotreated Vegetable Oil), a comodity tem um alto valor no mercado, o que diminui suas possibilidades de contribuir para a solução do problema de maneira massiva no nosso território.
Aqui também é preciso compreender a concorrência entre o diesel verde e o Combustível Sustentável para a Aviação (SAF, na sigla em inglês).
A aviação internacional não tem alternativa de curto prazo para descarbonizar o setor, além do SAF. O peso de baterias ou a falta de maturidade industrial para a propulsão a hidrogênio torna pouco provável que a próxima geração de aviões utilize propulsão eletrificada.
Uma alternativa interessante para abastecer o avião é o Alcohol-to-Jet de 2ª geração. A Raízen é um expoente internacional para este tipo de tecnologia, mas essa jornada ainda está começando e, provavelmente será longa, se considerado o lobby das empresas internacionais deste setor.
Fortemente influenciado pelas decisões da União Europeia, a regulação da aviação tem definido critérios bastante restritivos e com forte influência geopolítica. Os e-Fuels (combustíveis sintéticos avançados) ainda tem altíssimo custo de produção e não são viáveis no momento. Resta ao SAF para fazer voar os aviões.
SAF e HVO competem entre si. Seja com relação aos recursos financeiros para a construção de usinas produtoras, seja com relação à fonte da matéria-prima, seja em função da demanda puxada pelas restrições normativas internacionais, é intuitivo concluir que é mais vantajoso comercializar SAF do que HVO. Tudo isso está gerando uma forte tendência a priorizar o modal aeroviário na utilização destes óleos vegetais.
Apesar de não haver uma indexação direta entre o preço do óleo diesel e o preço do HVO, ao longo do tempo, o preço tem oscilado em uma faixa próxima a 100% de aumento de custo para o produto vegetal. O HVO não tem se mostrado viável no curto ou médio prazo no Brasil, tendência que ainda deve durar mais de uma década. Assim sendo, muitos projetos já foram anunciados, mas estão avançando lentamente.
Biodiesel é a forma efetiva e viável para a descarbonização de caminhões
O biodiesel é uma alternativa realista para a descarbonização, quando comparado ao diesel verde.
Os principais produtores mundiais de biodiesel são os Estados Unidos, a Indonésia e o Brasil. Embora pouco se divulgue, Alemanha e China também fazem parte dos países com produção significativa. A indústria brasileira de biodiesel está se recuperando de uma queda em 2022, quando a mistura obrigatória foi reduzida para 10%. Com a retomada da progressão da mistura para 14% este ano e 15% no próximo, espera-se que o Brasil se aproxime novamente dos líderes.
As pesquisas sobre biodiesel no Brasil, iniciadas pelo Instituto Nacional de Tecnologia na década de 1920, ganharam destaque com a criação do Pró-Óleo após o choque dos preços do petróleo nos anos 1970. No entanto, a queda dos preços do petróleo nos anos 1980 e o sucesso do Pró-Alcool relegaram o Pró-Óleo a um papel secundário na política energética nacional.
Em 2004, o governo brasileiro retomou o foco no biodiesel com o lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) e do Marco Regulatório para a introdução do biodiesel na Matriz Energética Brasileira, com integração produtiva da agricultura familiar.
Em 2005, o Governo Federal lançou o Selo Combustível Social (renomeado para Selo Biocombustível Social em 2020) e definiu o plano de formação e consolidação do mercado interno de biodiesel para o período de 2005-2010. Em junho de 2017, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) aprovou as diretrizes estratégicas do RenovaBio.
Se considerado os aspectos de sustentabilidade econômico, social e ambiental, o biodiesel precisa ser visto como a solução mais imediata e efetiva para descarbonizar a frota de caminhões em circulação no Brasil, tanto no presente quanto provavelmente na próxima década.
Utilizando a soja como sua principal matéria-prima, o biodiesel brasileiro sustenta a agricultura familiar em muitos estados do país. A coleta de óleo de cozinha utilizado promove a reciclabilidade e a oportunidade de trabalho para coletores profissionais, muitos dos quais não encontrariam emprego nos ramos tradicionais. A capilaridade da produção, a organização através de cooperativas, a possibilidade de utilização do óleo de cozinha usado e das gorduras animais fazem do biodiesel um exemplo real de economia circular.
Ao contrário do que prega a narrativa “prato ou tanque”, a fabricação do biodiesel é uma pequena parte dos produtos oriundos da soja, sendo que a maior parte é o farelo de soja utilizando na alimentação pecuária, fonte de proteína animal para a alimentação humana, no Brasil e na exportação para o exterior.
Os desafios do aumento da mistura
No entanto, existem críticas significativas em relação ao aumento da mistura de biodiesel com o óleo diesel, sendo o próprio setor de transportes uma das principais barreiras para a descarbonização do modal rodoviário.
Essas críticas estão relacionadas à qualidade insuficiente do biodiesel proveniente de algumas usinas do país, a irregularidades de algumas distribuidoras no processo de mistura com óleo diesel e falta de qualidade da tancagem e abastecimento. Isso é um contrassenso se comparamos com o rigor das exigências para o biodiesel no mercado brasileiro. Nossas normas para biodiesel são reconhecidas como as mais rigorosas do mundo.
Há décadas a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) regula a produção e comercialização do biodiesel no Brasil, seguindo o estado da arte internacional sobre o tema.
Mais recentemente, a Resolução ANP nº 857/2021 estabeleceu um novo modelo de comercialização de biodiesel, seguindo as diretrizes da Resolução CNPE nº 14/2020. A Resolução ANP nº 910/2022 permitiu o uso experimental ou específico de biodiesel ou de sua mistura com óleo diesel A em quantidade superior ao percentual de adição de biodiesel obrigatória. Em 2023, a Resolução nº 3 determinou a adição progressiva de biodiesel ao óleo diesel, atingindo 15% em 2026, e a Resolução ANP nº 920 estabeleceu as especificações do biodiesel e as obrigações de controle de qualidade para os agentes econômicos que comercializam o produto no Brasil.
Essas normas, juntamente com a participação dos representantes técnicos da ANP no Programa de Monitoramento da Qualidade do Biodiesel, garantem que o biodiesel brasileiro seja produzido e comercializado de acordo com os mais altos padrões de qualidade e sustentabilidade.
Em 28 de fevereiro de 2019, o Ministério de Minas e Energia (MME) publicou um relatório que, infelizmente, não tem sido levado a termo de forma estruturada, pela indústria nacional. O relatório do Grupo de Trabalho para Testes com Biodiesel, estabelecido pelas Portarias MME nº 262/2016 e nº 80/2017, apresenta recomendações importantes para a validação do uso de biodiesel B15 em motores e veículos.
Através dele o MME solicitava aos fabricantes que apresentassem ao Governo Federal, em até 6 meses, os resultados de testes ainda não concluídos e de novos testes específicos para as preocupações que haviam sido levantadas em testes realizados ao longo de anos anteriores. Além disso, os fabricantes foram incentivados a aprimorar suas tecnologias e produtos para o uso progressivo de biodiesel. Isso ainda não aconteceu.
B100 já é realidade
Empresas brasileiras, como a Amaggi, a JBS, o Grupo Potencial e a Be8, estão dando exemplos de que a utilização de biodiesel a 100% é possível e viável.
A Amaggi usa seu biodiesel puro (B100) em suas máquinas e equipamentos na Fazenda Sete Lagoas, em Diamantino (MT).
A JBS realiza testes com um caminhão, abastecido exclusivamente com biodiesel de sua própria produção.
O Grupo Potencial realiza testes com caminhões de sua frota, mostrando que o veículo abastecido com biodiesel 100% (B100) foi em média 2,33% mais econômico na comparação uma mistura B14.
A Be8 lançou um produto específico para utilização B100 em motores ciclo diesel nos modais rodoviário, hidroviário e marítimo ou ferroviário.
Essas iniciativas demonstram que o B100 já é uma alternativa para a descarbonização da matriz energética no transporte brasileiro.
A transição energética no Brasil depende de uma combinação de rotas tecnológicas e de marcos regulatórios que aumentem os mecanismos financeiros de projetos de baixo carbono.
O Projeto de Lei (PL) 528/2020, conhecido como “Combustível do Futuro”, atualmente em análise no Senado, representa um marco histórico para essa transição. Este projeto propõe iniciativas para promover a mobilidade sustentável de baixo carbono e introduzir novos biocombustíveis na matriz energética nacional.
Vivemos um momento crucial da história dos transportes de carga por meio de máquinas movidas a motores diesel. Não podemos acreditar ou esperar que uma nova tecnologia chegue para descarbonizar de maneira efetiva o setor. Isso ainda vai demorar.
Não podemos nos furtar a progredir testando e aprimorando as boas práticas de utilização. Devemos garantir que a frota circulante de caminhões brasileiros participe das reduções de emissões de GEE de maneira efetiva e imediata. Para isso, somente o aumento da mistura e a utilização de biodiesel a 100% tem a possibilidade de trazer uma contribuição efetiva para o setor nos curto e médio prazos.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Fonte: epbr
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