Pouca gente sabe, mas cerca de 50 anos antes do lançamento do Proálcool, em 1975, o Brasil já produzia e consumia o biocombustível feito a partir da cana-de-açúcar.
Datada de 1925, a foto em preto e branco de um Ford de 4 cilindros, com duas faixas afixadas nas laterais –“Álcool” e “Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – Estação Experimental de Combustíveis e Minérios”– é uma das imagens mais antigas da saga brasileira da bioenergia.
Segundo relatos históricos, o “fordeco” participou de uma corrida no Circuito da Gávea, rodando 230 km em prova promovida pelo Automóvel Clube do Brasil. Movido a álcool etílico hidratado 70%, o carro também fez bate-voltas entre Rio e São Paulo, Rio e Barra do Piraí e Rio e Petrópolis.
Um artigo do jornalista Neldson Marcolin na Revista Pesquisa, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), de março 2018, descreve a conjuntura da época:
“As primeiras experiências com esse carro ocorreram na Estação Experimental de Combustíveis e Minérios (EECM), organismo governamental de pesquisa que se transformou no Instituto Nacional de Tecnologia em 1933”.
A motivação não era muito diferente da de hoje, explica Marcolin. O então presidente Epitácio Pessoa (1919-1922) reclamava em 1922 da “colossal importação de gasolina no Brasil”, aludia ao “uso do álcool em seu lugar” e estimava o “amparo que a solução prestaria à indústria canavieira”.
O texto da revista ainda diz que “o governo seguinte, de Arthur Bernardes (1922-1926), encomendou à EECM um projeto de desenvolvimento de motores a álcool, que pudesse também servir de base para a legislação sobre o assunto”.
500 réis/litro
Em 1924, a Usina Serra Grande, no município de São José da Laje, em Alagoas, já produzia, em nível experimental, o Usga, biocombustível à base de álcool etílico, éter etílico e óleo de mamona, que em 1927 passou a abastecer centenas de veículos em bombas instaladas no Recife e em Maceió. O biocombustível era vendido a 500 réis o litro, bem mais em conta que a gasolina (900 réis/litro).
Um anúncio de jornal dos anos 1920 mostra um automóvel de luxo sendo abastecido e exalta as qualidades do combustível Usga nacional (iniciais da Usina Serra Grande).
“Fabricado por Carlos de Lyra & Cia, o pioneiro dos combustíveis nacionais à base de álcool cuja eficiência já está provada em 1 ano de ascendente consumo em Pernambuco e Alagoas. Usar combustível nacional é dever dos bons patriotas”, diz o anúncio.
De 1920 a 1939, o número de carros, só no Estado de São Paulo, saltou de 5.000 para 43.000, boa parte deles da Ford. A montadora, que se instalou no Brasil em 1919, fabricava 5.000 veículos por ano, em 1924. A GM chegou em 1925.
Em 1931, o governo brasileiro decretou a mistura de 5% de álcool nacional à gasolina importada, o que aumentou a demanda e o preço do biocombustível.
Superada a Grande Depressão (1929-1932), os preços da gasolina despencaram, e o álcool sumiu do mercado, voltando à moda durante a 2ª Guerra (1939-1945), por conta da dificuldade do Brasil em importar petróleo. Em alguns Estados, a porcentagem de álcool na gasolina chegou a 42% nessa época.
Proálcool
Em 1975, o mundo vivia a crise mundial do petróleo, que fez os preços da gasolina e do diesel dispararem. O decreto 76.593 de 1975 criou o Proálcool, o super programa do governo brasileiro para intensificar a produção de álcool-combustível e substituir a gasolina.
No final da década de 1970, segundo a Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), a produção de álcool atingiu 12,3 bilhões de litros. O Proálcool cumpria a sua missão de reduzir o impacto da crise global do petróleo no Brasil.
Na metade dos anos 1980, porém, o preço do petróleo começou a cair e o do açúcar, a subir, comprometendo o Proálcool. O álcool combustível ficou menos vantajoso não só para o consumidor como também para o produtor, e o biocombustível começou a faltar nas bombas.
O resgaste do álcool veio em 2003, com o lançamento do 1º veículo flex, capaz de rodar com etanol, gasolina e a mistura em qualquer proporção dos 2 combustíveis.
Hoje, mais de 22 milhões da frota de 34 milhões de veículos do país são flex. Segundo a Unica, o uso do etanol hidratado (utilizado diretamente no tanque dos veículos) e do etanol anidro (adicionado à gasolina) conseguiu evitar mais de 240 milhões de toneladas de gases causadores do efeito estufa.
Esse é um dos benefícios destacados na campanha “Vai de Etanol”, lançada na semana passada pela Unica, com anúncios na TV, no rádio e nas redes sociais.
A ideia é mostrar ao consumidor que, ao abastecer seu veículo com etanol, ele contribui para reduzir a poluição e o número de internações e mortes por doenças cardiorrespiratórias. Além disso, ao diminuir o consumo de combustíveis fósseis, o etanol ajuda a atenuar o aquecimento global. E, dependendo da época, é mais barato do que a gasolina.
O Brasil é o 2º maior produtor de etanol do mundo. Perde só para os Estados Unidos. Na safra 2022/2023, o volume produzido no país atingiu 31,2 bilhões de litros.
O setor sucroalcooleiro vê oportunidade para um crescimento maior do consumo. Relatório da IEA (Agência Internacional de Energia) indica que a demanda global de biocombustíveis deverá crescer 22% até 2027, o equivalente a 35 bilhões de litros/ano. Brasil, Canadá, Estados Unidos, Indonésia e Índia vão representar 80% da expansão total do uso de biocombustíveis.
Um estudo do Centro Brasileiro de Infraestrutura mostra que o Brasil tem potencial para liderar a produção mundial de biocombustíveis. Mas para isso é preciso que o etanol (de cana e de milho) tenha mais apoio das políticas públicas no programa de transição energética.
“Nesses 100 anos de história no Brasil, de forma muitas vezes imperceptível, o etanol esteve por trás de muitos avanços tecnológicos, ganhos econômicos, ambientais e de saúde. O futuro é ainda mais promissor, por ser um excelente carregador de hidrogênio”, diz Plinio Nastari, Mestre e doutor em economia agrícola e presidente da Datagro.
Fonte: Poder 360
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